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A Greve das Mães

Conto 2 - Aquele 1%

Era uma vez uma cidade onde todas as mães resolveram fazer greve.

 

Está parando todo mundo, mas tem 1% que não vai parar.

E ela está entre essas mães que não podem fazer greve.

Sua bebê tem 5 meses e o pai as abandonou faz um ano.

Ela não tinha programado essa gestação.

Ele disse que não queria usar camisinha.

E sumiu.

 

A greve começou ontem.

Ela tentou se organizar, mas ainda não conseguiu alguém pra ficar com a bebê.

Amanhã ela volta ao trabalho, que será um pouco presencial e um pouco remoto devido a pandemia.

 

Primeiro dia de trabalho. A reunião virtual começa. Todos dão as boas vindas para ela e sua bebê.

Há poucos homens na sala. Alguns estão conectados com a câmera desligada.

Um deles escreve no chat que está terminando o café da manhã das crianças.

O prefeito não conseguiu chegar e a vice-prefeita começa a reunião.

Assunto: greve das mães.

Todos estão espantados com a organização das mães.

A vice-prefeita sugere uma reunião com as organizadoras e pergunta se alguém tem o contato delas.

A bebê chora. Arranca o fone de ouvido.

Ela fica de pé, com a bebê virada de barriga pra baixo.

Ajusta o fone de ouvido.

Ela perdeu uma parte da fala, mas tudo bem. A próxima reunião será em 4 horas, sobre a greve das mães.

A bebê dorme.

Devagar, ela coloca a bebê na cama, bem juntinho ao seu pijama.

Vai até o banheiro, fecha a porta.

Aos sussurros, faz uma ligação:

- Está podendo falar?

A amiga diz que prefere conversar ao vivo.

 

A bebê dorme pesado.

E ela consegue conversar com a amiga na cozinha:

- Tive uma reunião hoje com a vice-prefeita, secretários, secretárias... A sala estava cheia. Pediram seu contato.

A amiga sorri:

- Bom retorno ao trabalho. Como passou rápido essa licença maternidade.

- É uma das nossas reivindicações o aumento da licença maternidade, né? Mas, e aí? Te ligaram?

Neste instante, o telefone da amiga toca.

A bebê acorda.

Ela corre para enfiar a bebê no peito para que não ouçam seu resmungar.

A amiga aceita uma reunião presencial com a vice-prefeita para dali a uma hora.

Elas decidem ir juntas.

Ela, a amiga e a bebê amarrada ao colo.

 

Faz 5 meses que ela não pisava na prefeitura. A amiga finge que não a conhece e vai para a reunião, enquanto ela mostra a bebê para as poucas pessoas que estão trabalhando presencialmente.

 

A reunião é apenas da amiga com a vice-prefeita.

Ela sabe disso, mas quer participar.

A vice-prefeita a vê passar e interrompe a reunião. Parabeniza pela bebê. E a convida a conhecer uma das organizadoras da greve:

- Faço parte do 1% que não pode parar - ela se justifica.

- Sabia que uma das nossas principais reivindicações é a ampliação da licença maternidade? - responde a amiga.

A vice-prefeita, que também é mãe e está de greve, continua a reunião.

Ela percebe muita afinidade e empatia entre as amigas e sugere que ela seja o contato oficial da prefeitura com as organizadoras da greve.

 

Após a reunião, ela acha uma mesa de trabalho vaga.

Estica uma toalha no chão e deita a bebê.

Num papel, anota algumas das reivindicações das mães e as sugestões de como botar em prática.

Ela ficou os últimos dois meses construindo isso com as organizadoras da greve.

Principalmente durante as mamadas noturnas.

 

O almoço chega. Foi pago pela vice-prefeita.

Ela come na mesa de trabalho mesmo.

Sente sono.

Muito sono.

Ela lembra de um sofá.

Pega a bebê, o celular e acaba cochilando no sofá.

 

Toca o alarme da próxima reunião. A bebê acorda. Vazou xixi.

Ela corre até a mesa de trabalho e não acha suas anotações. Ainda bem que ela tinha fotografado e mandado para as organizadoras darem sugestões.

Ela troca a bebê lá mesmo, no meio do escritório.

Ela olha as mensagens. A vice-prefeita está esperando na sala de reunião.

 

A reunião está agitada, muitos homens são contra as propostas das mães.

 

A vice prefeita pede a fala:

- Ela vai ser nosso ponto de contato oficial com as organizadoras da greve. Inclusive essas sugestões que estou lendo vieram de uma reunião que tivemos horas atrás.

A prefeita desliga o microfone e diz baixinho para ela:

- Suas anotações são fantásticas. Acabei vendo em cima da mesa e resolvi apresentar nesta reunião. Te causei algum desconforto?

- Não causou, está tudo bem assim. Mas acho que tenho uns pontos pra mudar.

- Podemos ver isso depois com calma - diz a vice-prefeita.

 

Já são dez da noite.

Só há mulheres no escritório. Todas trabalhando nas demandas da greve.

Ela está exausta.

Suas costas doem de tanto ficar com a bebê no colo.

Sua roupa está com vômito, xixi, coco.

 

A vice-prefeita a autoriza a voltar de carro da prefeitura e a pedir um jantar pronto.

E manda uma mensagem dizendo que no dia seguinte às 18h terá uma reunião presencial importante e que ela precisa estar presente.

 

Ela chega em casa.

Da banho na bebê.

Come.

Toma uma ducha rápida.

E desmaia na cama.

 

A bebê acorda de madrugada.

Ela aproveita para olhar as notícias e redes sociais.

Alta adesão das mães na greve.

Homens xingando as mães nas redes sociais.

Homens apoiando as mães.

Muitas fotos de pais fazendo o jantar e dando banho.

No grupo das organizadoras da greve, divergências sobre a priorização das reivindicações e celebração pela aproximação com a prefeitura.

 

Três semanas se passam.

Ela acorda antes da bebê.

Por conta da pandemia, a cidade está em fase vermelha.

Alguns secretários pediram férias.

O filho do prefeito está internado. O prefeito é o único que pode ficar com ele no hospital.

Pelos próximos 3 meses a vice-prefeita vai comandar a cidade.

 

A reunião virtual começa.

A ampliação da licença maternidade deverá ser votada hoje pelas deputadas federais.

As mães terão 18 meses de licença, a serem divididos entre o pai também.

Salário integral.

Está para começar também uma investigação em todas as empresas da cidade. Quem estiver pagando salário menor para as mães ou tiver demitindo mãe após a licença maternidade, será multado.

 

Começa o debate sobre redução de salários de funcionários públicos, comissionados, juízes, vereadores...

Ela e as organizadoras da greve já tinham feito um estudo de como fazer essas reduções. Como precisa de muitas aprovações, elas já estavam em contato com algumas pessoas chaves antes mesmo da greve

começar.

Uma aprovação difícil de sair, mas que ajudaria a transferir esse dinheiro para as mães.

Havia poucos homens presentes na reunião.

Alguns com criança junto. Outros, com a câmera desligada.

Poucos conseguiam participar.

 

Marcaram uma reunião para às 19h. Alguns homens reclamaram de ter que estar com os filhos nesse horário.

Seria uma reunião muito importante.

Com o aumento de salário, ela conseguiu contratar um ajudante para auxiliar com a bebê.

 

Cinco minutos antes, ela inicia a reunião pedindo um momento de reflexão aos mortos pelo vírus.

Certamente, as 50 mulheres mais influentes da cidade estão na reunião: são políticas, empresárias, atrizes famosas, influenciadoras digitais..

A bebê está acordada e participa da reunião.

Primeiro ponto: redução drástica dos salários pagos com dinheiro público.

Um homem sem filhos fala. É contra.

Outras 7 mulheres falam na sequência. São a favor.

O homem interrompe a fala e diz que elas estão sendo inconsequentes.

Ela silencia o microfone dele. E explica aos presentes que esse tipo de atitude não será permitida na reunião.

Um vereador pede a fala. Diz não estar de acordo com a postura do outro homem e que também apoia a redução salarial.

Um grupo de mães do poder judiciário apresenta uma proposta de redução dos próprios vencimentos e como deve ser feito para que seja aprovado.

- É um processo burocrático e demorado, mas temos apoio em todos os departamentos e estamos correndo o quanto podemos. Precisamos de apoio popular para garantir a aprovação.

 

Um juiz aposentado, vendo que sua aposentadoria seria reduzida para o que de fato ele havia contribuído, começa a gritar.

Chama as mães de loucas, de irresponsáveis, diz que nunca deveriam ter saído da cozinha.

Ela coloca o microfone dele no mudo e a reunião continua.

Alguns homens pedem prioridade na fala, pois precisam sair para cuidar das crianças.

Um deles, um político influente, diz que os pais não estão conseguindo acompanhar o trabalho, que estão sendo demitidos e dependendo do salário das esposas.

Outro juiz aposentado, que está com o neto de 8 anos sentado ao lado, diz ter se sensibilizado com a situação da própria filha e que concorda com a redução proposta.

- Não faz sentido eu ter esse tanto de dinheiro público comigo sendo que as mães estão passando por tanto sufoco. Agora preciso dar janta pro meu neto. Contem comigo. Conheço muita gente influente.

 

Uma roteirista de novela fala sobre um acordo entre as artistas de se fazer novelas e seriados com outra visão da maternidade e que poderiam ajudar na conscientização das pessoas.

Como, por exemplo, os homens fazendo vasectomia, e divulgação de serviços oferecidos pelo SUS que previnem a gravidez: DIU, camisinhas, anticoncepcionais..

 

Aos poucos, os homens vão saindo da reunião.

Ela já amamentou a bebê que agora dorme.

A pauta é extensa. Alguns homens pediram para a reunião continuar no dia seguinte, mas o combinado era passar por todos os assuntos previstos naquela noite.

É aprovada a criação de um fundo para pagar um auxílio para as mães por 3 anos.

As empresárias da cidade passarão a contratar mais mães e a participar das reuniões das escolas públicas do entorno das lojas.

O dono da loja de absorventes diz que precisa de apoio popular para conseguir uma drástica redução dos impostos e baratear o valor dos absorventes.

A reunião termina.

Ela desliga o computador.

O telefone toca.

Sua amiga está incrédula, radiante de tanta alegria.

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Conto escrito por Carolina Borges, e revisado por Mariana Specian.

Conto inspirado nas respostas enviadas pelo formulário e em conversas entre a autora e revisora.

 

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